"Educando para o futuro!"
Dedico este romance aos queridos leitores de todos os países onde meus livros têm sido publicados. Em especial aos que de alguma forma vendem sonhos por meio da sua inteligência, crítica, sensibilidade, generosidade, amabilidade. Os vendedores de sonhos são freqüentemente estranhos no ninho social. São anormais. Pois o normal é chafurdar na lama do individualismo, do egocentrismo, do personalismo. O seu legado será inesquecível.
Este é meu quarto livro de ficção e meu vigésimo segundo livro. Meus romances, como O futuro da humanidade e A ditadura da beleza, não objetivam criar tramas que apenas entretêm, divertem, excitam a emoção. Todos eles envolvem teses psicológicas, psiquiátricas, sociológicas e filosóficas. Têm a intenção de provocar o debate, viajar no mundo das idéias e ultrapassar as fronteiras do preconceito.
Escrevo continuamente há mais de vinte e cinco anos e publico há pouco mais de oito anos. Tenho mais de 3 mil páginas ainda inéditas, não publicadas. Muitos não entendem por que meus livros são tão procurados, já que não tenho atração por propagandas e, dentro do possível, possuo uma vida social um tanto reclusa. Talvez seja- por causa das viagens pelo território do insondável mundo da mente humana. Sinceramente, não mereço esse sucesso. Não sou um autor capaz de produzir textos com agilidade. Sou, sim, um escritor determinado. Costumo brincar que sou um grande teimoso. Procuro ser um artesão das palavras. Escrevo e reescrevo continuamente cada parágrafo, dia e noite, como se fosse um escultor compulsivo. Você vai ver neste romance diversos pensamentos que foram esculpidos depois de terem sido reescritos, forjados em minha psique dez ou vinte vezes.
Há livros que saem do cerne do intelecto; outros saem das entranhas da emoção. O vendedor de sonhos saiu dos recônditos desses dois espaços. Há muitos anos o venho elaborando, até que chegou o momento de escrevê-lo. Enquanto o escrevia, fui bombardeado com inumeráveis questionamentos, sorri muito e ao mesmo tempo repensei nossas loucuras, pelo menos as minhas. Este romance passeia pelos vales do drama e da sátira, pela tragédia dos que perderam e pela ingenuidade dos que fizeram da existência o picadeiro de um circo.
O personagem principal é dotado de uma ousadia sem precedente. Ele esconde muitos segredos. Nada, ninguém consegue controlar seus gestos e palavras, a não ser sua própria consciência. Sai bradando aos quatro ventos que as sociedades modernas se tornaram um grande manicômio global, onde o normal é ser ansioso, estressado, e o anormal é ser saudável, tranqüilo, sereno. Ele instiga a mente de todos os que passam por ele, seja nas ruas, nas empresas, nos shoppings, nas escolas, com o método socrático. Torpedeia as pessoas com inumeráveis perguntas.
Sonho que este livro possa ser lido não apenas pelos adultos, mas também pelos jovens, pois penso que muitos deles estão se tornando servos passivos do sistema social. Não são arrebatados pelos sonhos e pelas aventuras. Tornaram-se, apesar das exceções, consumidores de produtos e serviços e não de idéias. Entretanto, consciente ou inconscientemente, todos querem uma vida regada a emoções borbulhantes, até bebês quando se arriscam a sair do berço. Mas onde encontrá-las em abundância? Em que espaço da sociedade tais emoções se encontram? Alguns pagam muito dinheiro para consegui-las, mas vivem angustiados. Outros se desesperam em busca de fama e reputação, mas morrem entediados. Outros ainda escalam íngremes montanhas para ter algumas doses de aventura, mas elas se dissipam no calor do dia seguinte. Na contramão da massacrante rotina social estão os personagens deste romance. Eles viverão altas doses de adrenalina diariamente. Entretanto, o "negócio" de vender sonhos tem um alto preço. Por isso, riscos e vendavais os acompanharão.
No mais inspirador dos dias, sexta-feira, cinco da tarde, pessoas apressadas — como de costume — paravam e se aglomeravam num entroncamento central da grande metrópole. Olhavam para o alto, aflitas, no cruzamento da Rua América com a Avenida Europa. O som estridente de um carro de bombeiros invadia os cérebros, anunciando perigo. Uma ambulância procurava furar o trânsito engarrafado para se aproximar do local.
Os bombeiros chegaram com rapidez e isolaram a área, impedindo os espectadores de se aproximar do imponente Edifício San Pablo, pertencente ao grupo Alfa, um dos maiores conglomerados empresariais do mundo. Os cidadãos se entreolhavam, e os transeuntes que chegavam pouco a pouco traziam no semblante uma interrogação. O que estaria acontecendo? Que movimento era aquele? As pessoas apontavam para o alto. No vigésimo andar, num parapeito do belo edifício de vidro espelhado, debruçava-se um suicida.
Mais um ser humano queria abreviar a já brevíssima existência. Mais uma pessoa planejava desistir de viver. Era um tempo saturado de tristeza. Morriam mais pessoas interrompendo a própria vida do que nas guerras e nos homicídios. Os números deixavam atônitos os que refletiam sobre eles. A experiência do prazer havia se tornado larga como um oceano, mas tão rasa quanto um espelho d’água. Muitos privilegiados financeira e intelectualmente viviam vazios, entediados, ilhados em seu mundo. O sistema social assolava não apenas os miseráveis, mas também os abastados.
O suicida do San Pablo era um homem de quarenta anos, face bem torneada, sobrancelhas fortes, pele de poucas rugas, cabelos grisalhos semilongos e bem-tratados. Sua erudição, esculpida por muitos anos de instrução, agora se resumia a pó. Das cinco línguas que falava, nenhuma lhe fora útil para falar consigo mesmo; nenhuma lhe dera condições de compreender o idioma de seus fantasmas interiores. Fora asfixiado por uma crise depressiva. Vivia sem sentido. Nada o encantava.
Naquele momento, apenas o último instante parecia atraí-lo. Esse fenômeno monstruoso que costumam chamar de morte parecia tão aterrador... mas era, também, uma solução mágica para aliviar os transtornos humanos. Nada parecia demover aquele homem da idéia de acabar com a própria vida. Ele olhou para cima, como se quisesse se redimir do seu último ato, olhou para baixo e deu dois passos apressados, sem se importar em despencar. A multidão sussurrou de pavor, pensando que ele saltaria.
Alguns observadores mordiam os dedos em grande tensão. Outros nem piscavam os olhos, para não perder detalhes da cena — o ser humano detesta a dor, mas tem uma fortíssima atração por ela; rejeita os acidentes, as mazelas e misérias, mas eles seduzem sua retina. O desfecho daquele ato traria angústia e insônia aos espectadores, mas eles resistiam a abandonar a cena de terror. Em contraste com a platéia ansiosa, os motoristas parados no trânsito estavam impacientes, buzinavam sem parar. Alguns colocavam a cabeça janela afora e vociferavam: ”Pula logo e acaba com esse show!”.
Os bombeiros e o chefe de polícia subiram até o topo do edifício para tentar dissuadir o suicida. Não tiveram êxito. Diante do fracasso, um renomado psiquiatra foi chamado às pressas para realizar a empreitada. O médico tentou conquistar a confiança do homem, estimulou-o a pensar nas conseqüências daquele ato... mas nada. O suicida estava farto de técnicas, já havia feito quatro tratamentos psiquiátricos malsucedidos. Aos berros, ameaçava: ”Mais um passo e eu pulo!”. Tinha uma única certeza, ”a morte o silenciaria”, pelo menos acreditava que sim. Sua decisão estava tomada, com ou sem platéia. Sua mente se fixava em suas frustrações, remoia suas mazelas, alimentava a fervura da sua angústia.
Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos no alto do edifício, apareceu sorrateiramente um homem no meio da multidão, pedindo passagem. Aparentemente era mais um caminhante, só que malvestido. Trajava uma camisa azul de mangas compridas desbotada, com algumas manchas pretas. E um blazer preto amassado. Não usava gravata. A calça preta também estava amassada, parecia que não via água há uma semana. Cabelos grisalhos ao redor da orelha, um pouco compridos e despenteados. Barba relativamente longa, sem cortar há algum tempo. Pele seca e com rugas sobressaltadas no contorno dos olhos e nos vincos do rosto, evidenciando que às vezes dormia ao relento. Tinha entre trinta e quarenta anos, mas aparentava mais idade. Não expressava ser uma autoridade política nem espiritual, e muito menos intelectual. Sua figura estava mais próxima de um desprivilegiado social do que de um ícone do sistema.
Sua aparência sem magnetismo contrastava com os movimentos delicados dos seus gestos. Tocava suavemente os ombros das pessoas, abria um sorriso e passava por elas. As pessoas não sabiam descrever a sensação que tinham ao ser tocadas por ele, mas eram estimuladas a abrir-lhe espaço.
O caminhante aproximou-se do cordão de isolamento dos bombeiros. Foi impedido de entrar. Mas, desrespeitando o bloqueio, fitou os olhos dos que o barravam e expressou categoricamente:
— Eu preciso entrar. Ele está me esperando. — Os bombeiros o olharam de cima a baixo e menearam a cabeça. Parecia mais alguém que precisava de assistência do que uma pessoa útil numa situação tão tensa.
— Qual o seu nome? — indagaram sem pestanejar.
— Não importa neste momento! — respondeu firmemente o misterioso homem..
— Quem o chamou? — questionaram os bombeiros.
— Você saberá! E se demorarem me interrogando, terão de preparar mais um funeral — disse, elevando os olhos.
Os bombeiros começaram a suar. Um tinha síndrome do pânico, outro era insone. A última frase do misterioso homem os perturbou. Ousadamente ele passou por eles. Afinal de contas, pensaram, ”talvez seja um psiquiatra excêntrico ou um parente do suicida”.
Chegando ao topo do edifício, foi barrado novamente. O chefe de polícia foi grosseiro.
— Parado aí. Você não devia estar aqui. — Disse que ele deveria descer imediatamente. Mas o enigmático homem fitou-lhe os olhos e retrucou:
— Como não posso entrar, se fui chamado?
O chefe de polícia olhou para o psiquiatra, que olhou para o chefe dos bombeiros. Faziam sinais um para o outro para saber quem o chamara. Bastaram alguns segundos de distração para que o misterioso malvestido saísse da zona de segurança e se aproximasse perigosamente do homem que estava próximo de seu último fôlego.
Quando o viram, não dava mais tempo para interrompê-lo. Qualquer advertência que fizessem contra ele poderia desencadear o acidente, levando o suicida a executar sua intenção. Tensos, preferiram aguardar o desenrolar dos fatos.
O homem chegou sem pedir licença e sem se perturbar com a possibilidade de o suicida se atirar do edifício. Pegou-o de surpresa, ficando a três metros dele. Ao perceber o invasor, o outro gritou imediatamente:
— Vá embora, senão vou me matar!
O forasteiro ficou indiferente a essa ameaça. Com a maior naturalidade do mundo, sentou-se no parapeito do edifício, tirou um sanduíche do bolso do paletó e começou a comê-lo prazerosamente. Entre uma mordida e outra, assoviava uma música, feliz da vida.
O suicida ficou abalado. Sentiu-se desprestigiado, afrontado, desrespeitado em seus sentimentos.
Aos berros, clamou:
— Pare com essa música. Eu vou me jogar. Intrépido, o estranho homem reagiu:
— Você quer fazer o favor de não perturbar meu jantar?!
- disse com veemência. E deu mais umas boas mordidas, mexendo as pernas com prazer. Em seguida, olhou para o suicida e fez um gesto, oferecendo-lhe um pedaço.
Ao ver esse gesto, o chefe de polícia tremulou os lábios, o psiquiatra estatelou os olhos e o chefe dos bombeiros franziu a testa, perplexo.
O suicida ficou sem reação. Pensou consigo: ”Não é possível! Achei alguém mais maluco do que eu”.
Ver alguém comer um sanduíche com eloqüente prazer diante de quem estava para se matar era um cena surreal. Parecia extraída de um filme. O suicida fechou parcialmente os olhos, aumentou um pouco a freqüência respiratória e contraiu ainda mais os músculos da face. Não sabia se atirava, se gritava, se bronqueava com o estranho. Ofegante, bradou, altissonante:
— Se manda! Eu vou me atirar. — E ficou a um fio de cair. Parecia que dessa vez ele realmente se esborracharia no chão. A multidão sussurrou, apavorada, e o chefe de polícia colocou as mãos nos olhos para não ver a desgraça.
Todos esperavam que, para evitar o acidente, o estranho homem se retirasse imediatamente de cena. Ele poderia dizer, como fizeram o psiquiatra e o policial: ”Não faça isso! Eu vou embora”, ou dar um conselho do tipo: ”A vida é bela. Você pode superar seus problemas. Você tem muitos anos pela frente”. Entretanto, num sobressalto, colocou-se rapidamente em pé e, para assombro de todos e em especial do suicida, bradou um poema filosófico em voz alta. Declamava-o para os céus e apontava as mãos na direção daquele que queria exterminar seu fôlego de vida:
Seja anulado no parêntese do tempo o dia em que este homem nasceu!
Que na manhã desse dia seja dissipado o orvalho que
Umedece a relva!
Que seja retida a claridade da tarde que trouxe júbilo
aos caminhantes!
Que a noite em que este homem foi concebido seja
usurpada pela angústia!
Resgate-se dessa noite o brilho das estrelas que pontilhavam o céu!
Recolham-se da sua infância seus sorrisos e seus medos!
Anulem-se da sua meninice suas peripécias e suas aventuras!
Risquem-se da sua maturidade seus sonhos e pesadelos,
sua lucidez e suas loucuras!
Após ter recitado o poema a plenos pulmões, o estranho expressou um ar de tristeza e, abaixando o tom de voz, disse o número um, sem dar qualquer explicação da contagem. A multidão, atônita, perguntava-se se aquilo não era uma peça de teatro a céu aberto. Tampouco o policial sabia como reagir: seria melhor intervir ou continuar acompanhando o desenrolar dos fatos? O chefe dos bombeiros olhou para o psiquiatra, pedindo explicações. Confuso, ele disse:
— Não conheço nada na literatura sobre anular a existência, recolher sorrisos. Não entendo de poesia... Deve ser mais um maluco!
O suicida ficou pasmado, quase em estado de choque. As palavras do forasteiro ecoaram em sua mente sem que ele lhes desse permissão. Indignado, reagiu com violência:
— Quem é você para querer assassinar o meu passado?! Que direito tem de destruir minha infância? Que ousadia é essa? — Após agredir o invasor com essas frases, caiu em si e pensou: ”Será que não sou eu o autor desse assassinato?”. Mas lutava para dissipar qualquer ponderação.
Vendo-o circunspecto, o misterioso homem teve o atrevimento de provocá-lo ainda mais:
— Cuidado! Pensar é perigoso, principalmente para quem quer morrer. Se quiser se matar, não pense.
O suicida ficou embaraçado; fora fisgado pelo invasor. Pensou consigo: ”Esse sujeito está me encorajando a morrer ou o quê? Será que estou diante de um sádico? Será que ele quer ver sangue?”. Sacudiu a cabeça, como se assim pudesse interromper seus devaneios, mas os pensamentos sempre traem os desejos impulsivos. Percebendo a confusão mental do suicida, o estranho homem falou com suavidade, mas com não menos contundência:
— Não pense! Porque, se você pensar, vai perceber que quem se mata comete homicídios múltiplos: mata primeiro a si, e depois, aos poucos, os que ficam. Se pensar, entenderá que a culpa, os erros, as decepções e as desgraças são privilégios de uma vida consciente. A morte não tem esses privilégios! — Em seguida, o forasteiro saiu do estado de segurança e passou para o de angústia. Disse o número quatro e movimentou indignadamente a cabeça.
O suicida ficou paralisado. Queria rejeitar as idéias do forasteiro, mas elas pareciam um vírus penetrando nos circuitos de sua mente. Que palavras eram aquelas? Perturbado e tentando resistir às reflexões, enfrentou o forasteiro:
— Quem é você que, em vez de me poupar, me confronta? Por que não me trata como um miserável doente mental, digno de pena? — e, aumentando o tom de voz, decretou: — Cai fora! Sou um homem completamente acabado.
Em vez de se intimidar, o estranho homem perdeu a paciência e censurou seu interlocutor perturbado:
— Quem disse que você é uma pessoa frágil ou um pobre deprimido que esgotou o prazer de viver? Ou um desprivilegiado... um frustrado? Ou um moribundo que não consegue carregai o peso das suas perdas? Para mim, você não é nada disso. Para mim, você é apenas um homem orgulhoso, preso na sua gaiola emocional, alienado de misérias maiores que a sua.
O suicida colocou as duas mãos para trás e se afastou, assustado, da linha de tiro em que se encontrava. Com raiva e a voz já embargada, indagou:
— Quem é você para me chamar de orgulhoso, um prisioneiro em minha gaiola emocional? Quem é você para dizer que estou alienado de sofrimentos maiores que os meus?!
Ele sentia-se alvejado no peito, sem ar. O intruso acertara na mosca. Seus pensamentos penetraram como um raio nos recônditos da sua psique. Naquele momento, o triste homem pensou no pai, que lhe esmagara a infância, lhe causara muita dor. Seu pai emocionalmente distante, alienado, enclausurado em si mesmo. Mas o suicida não tocava nesse assunto com ninguém; era-lhe extremamente difícil lidar com as cicatrizes do passado. Atingido por essas recordações angustiantes, disse em tom mais ameno, com lágrimas nos olhos:
—Cale-se. Não fale mais nada. Deixe-me morrer em paz. Ao perceber que havia tocado numa ferida profunda, o homem que o questionava diminuiu também o tom de voz.
— Eu respeito a sua dor e não posso elaborar nenhuma tese sobre ela. Sua dor é única, e é a única que você consegue realmente sentir. Ela te pertence e a mais ninguém.
Essas palavras iluminaram os pensamentos do homem quase em prantos. Ele entendeu que ninguém pode julgar a dor dos outros. Compreendeu que a dor de seu pai era única e, portanto, não poderia ser sentida ou avaliada por mais ninguém a não ser por ele mesmo. Sempre condenara veementemente seu pai, mas começou a vê-lo, pela primeira vez, com outros olhos. Nesse instante, para sua surpresa, o intruso lhe teceu algumas palavras que era difícil dizer se eram elogios ou críticas:
— Para mim, você é também um ser humano corajoso, pois tenciona esmagar seu corpo em troca de uma longa noite de sono no claustro de um túmulo! É, sem dúvida, uma bela ilusão — e interrompeu seu discurso, para que o suicida se desse conta das conseqüências imprevisíveis do seu ato.
Mais uma vez, o homem deprimido interrogou-se sobre aquela estranha figura que havia surgido para atrapalhar seus planos. Que homem era esse? Que palavras! Uma noite de sono eterno no claustro de um túmulo... essa idéia lhe causava repugnância. Porém, insistindo em levar seu projeto adiante, rebateu:
— Não vejo motivo para continuar esta merda de vida! — resmungou veementemente, e franziu a testa, atormentado pelas idéias que vinham sem pedir licença. O forasteiro calibrou a potente voz e o confrontou energicamente:
— Merda de vida? Mas que ingratidão! Seu coração, nesse instante, deve estar querendo rasgar seu tórax e protestar com lágrimas de sangue o extermínio da vida! — e, com rara eloqüência, mudou o timbre, tentando traduzir a voz do coração do suicida: — ”Não! Não! Tenha compaixão de mim! Eu bombeei seu sangue incansavelmente, milhões de vezes. Supri suas necessidades... fui seu servo sem reclamar. E agora você quer me calar, sem nem me dar direito de defesa? Ora... eu fui o mais fiel dos escravos. E qual é o meu prêmio? Qual a minha recompensa? Uma morte estúpida! Você quer interromper minha pulsação só para estancar seu sofrimento. Ah! Mas que tremendo egoísta você é! Quem me dera eu lhe pudesse bombear coragem! Enfrente a vida, seu egocêntrico!” — e, instigando o suicida, pediu que ele prestasse atenção no peito para perceber o desespero do seu coração.
O homem sentiu a camisa vibrar. Não notara que seu coração estava quase a explodir. Parecia que, de fato, estava gritando dentro do peito. O suicida arrefeceu. Ficou impressionado com o impacto da fala daquele estranho em seus pensamentos. Mas, quando parecia derrotado, mostrou o pouco da determinação que lhe restava.
— Já me sentenciei a morte. Não há esperança.
O maltrapilho, então, lhe deu o golpe derradeiro:
— Você já se sentenciou? Você sabia que o suicídio é a condenação mais injusta? Porque quem se mata executa contra si mesmo uma sentença fatal sem ao menos se dar o direito de defesa. Por que se auto-condena sem se defender? Por que não se dá o direito de argumentar com seus fantasmas, encarar suas perdas e lutar contra suas idéias pessimistas? É mais fácil dizer que não vale a pena viver... Você é realmente injusto consigo mesmo!
O estranho demonstrava saber com maestria que os que tiram a própria vida, ainda que planejem sua morte, não têm consciência das dimensões do fim da existência. Sabia que, se vissem o desespero dos íntimos e as conseqüências indecifráveis do suicídio, voltariam atrás e se defenderiam. Sabia que nenhuma carta ou bilhete poderia ser atestado de defesa. O homem do topo do Edifício San Pablo havia deixado uma mensagem para seu único filho, tentando explicar o inexplicável.
Ele também já tinha comentado com seus psiquiatras e psicólogos sobre suas idéias de suicídio. Fora analisado, interpretado, diagnosticado, e ouvira muitas teses sobre suas deficiências metabólicas cerebrais, bem como fora encorajado a superar seus conflitos e ver seus problemas sob diversos ângulos. Mas nada tocava aquele rígido intelectual. Nenhuma dessas intervenções ou explicações o retirou do seu atoleiro emocional.
O homem era inacessível. Mas estava pela primeira vez atordoado por aquela pessoa estranha que o interpelava no topo do edifício. A julgar pelas vestes e pela aparência humilde, tratava-se de um miserável que pedia esmolas. Contudo, as idéias e o discurso deixavam entrever um especialista em abalar mentes impenetráveis. Suas palavras geravam mais inquietação do que tranqüilidade. Parece que sabia que sem inquietação não há questionamento, e que sem questionamento não se encontram alternativas, não se abre o leque de possibilidades. A ansiedade do suicida aumentou tato que ele acabou por decidir fazer ao forasteiro uma pergunta; resistira muito a fazê-la, pois havia presumido, pelos primeiros embates, que entraria num campo minado. E entrou.
— Quem é você?
O suicida ansiava por uma resposta curta e clara, mas ela não veio. Em vez disso, mais uma rajada de indagações.
— Quem sou eu? Como você ousa perguntar quem eu sou se não sabe quem você é? Quem é você, que procura na morte silenciar sua existência diante de uma platéia assombrada?
Tentando desdenhar do homem que o interpelava, o suicida retrucou com certo sarcasmo:
— Eu? Quem eu sou? Sou um homem que em poucos momentos deixará de existir. E já não saberei quem sou e o que fui.
— Pois eu sou diferente de você. Porque você parou de procurar a si mesmo. Tornou-se um deus. Enquanto eu diariamente me pergunto: ”Quem sou?”. - E mostrando astúcia, fez outra pergunta: — E quer saber qual é a resposta que encontrei?
O suicida, constrangido, meneou a cabeça, dizendo que sim. O forasteiro prosseguiu:
— Eu lhe respondo se primeiramente me responder. De que fonte filosófica, religiosa ou científica você bebeu para defender a tese de que a morte é o fim da existência? Somos átomos vivos que se desintegram para nunca mais resgatar a sua estrutura? Somos apenas um cérebro organizado ou temos uma psique que coexiste com o cérebro e transcende seus limites? Que mortal o sabe? Você sabe? Que religioso pode defender seu pensamento se não usar o elemento da fé? Que neurocientista pode defender seus argumentos se não usar o fenômeno da especulação? Que ateu ou agnóstico pode defender suas idéias sem margem de insegurança e sem distorções?
O forasteiro parecia ter conhecido e ampliado o método socrático. Fazia intermináveis indagações. O suicida ficou atordoado com essa explosão de perguntas. Era um ateu, mas descobriu que seu ateísmo era uma fonte de especulação. Como muitos ”normais”, dissertava teses sobre esses fenômenos com uma segurança insustentável, sem nunca debatê-las isentas de paixões e tendências.
O homem de roupas rotas e semblante circunspeto dirigia sua máquina de perguntar também a si mesmo. E, antes de receber qualquer resposta, definitiva ou provisória, de quem o ouvia, deu um ultimato:
— Somos dois ignorantes. A diferença entre nós é que eu reconheço que sou.
Enquanto grandes idéias eram debatidas no topo do edifício, algumas poucas pessoas da multidão se afastavam sem saber o que estava acontecendo. Não suportavam esperar o desfecho final da desgraça alheia. Mas a maioria permanecia firme; não queriam perder o desenrolar dos fatos.
De repente, apareceu no meio do povo um homem curtido no uísque e na vodca, chamado Bartolomeu. Era mais um ser humano com cicatrizes ocultas, embora fosse extremamente bem-humorado e, em alguns momentos, petulante. Cabelos pretos desgrenhados, relativamente curtos, que há semanas não viam pente nem provavelmente água. Tinha mais de trinta anos. Pele clara, sobrancelhas exaltadas, rosto um pouco inchado, que escondia as cicatrizes da surrada existência. Trançava as pernas ao andar, de tão bêbado que estava. Com a voz pastosa e a língua presa, esbarrava em algumas pessoas e, em vez de agradecer pelo apoio, reclamava. Para uns, dizia:
— Ei, você me atropelou. Não vê que estou na mão esquerda?
Para outros, falava:
— Dá licença, amigo, que estou com pressa. Bartolomeu deu alguns passos a mais e tropeçou na sarjeta.
Para não se espatifar no chão, tentou se apoiar onde pôde, até que encontrou uma velhinha e caiu por cima dela. A coitada quase quebrou a coluna. Tentando se desvencilhar dele, deu-lhe uma bengalada na cabeça e gritou, assustada:
— Sai de cima, seu tarado!
Ele não tinha força para se deslocar. Vendo a velhinha gritar sem parar, para não ficar em maus lençóis, gritou mais alto que ela.
— Socorro! Gente, me açode! Esta velhinha está me agarrando.
As pessoas próximas deslocaram os olhos do céu para a terra. Fitaram a reação do bêbado. Percebendo sua astúcia, tiraram-no de cima da velhota, deram-lhe uns empurrões e disseram:
— Sai para lá, seu malandro.
Mas ele, não querendo sair por baixo, falou, todo atabalhoado:
— Obrigado, gente, por esse empu... empu... — Estava tão embriagado que ensaiou três vezes falar a palavra ”empurrãozinho”. - Em seguida, tentou sacudir a poeira da calça e quase caiu de novo:
— Vocês me salvaram dessa...
A velhinha estava de prontidão quando ele ameaçou caluniá-la. Levantou sem titubear a bengala e preparou-se para desferi-la novamente em sua cabeça, mas o esperto corrigiu-se a tempo.
— ... dessa senhora bonitona...
E deixou o campo de batalha. Começou a andar. Enquanto caminhava por entre a aglomeração, perguntava-se, intrigado, por que todo mundo estava compenetrado, olhando para cima. Achou que as pessoas estavam vendo um extraterrestre. Olhou para o alto do edifício com dificuldade e, tumultuando mais uma vez o ambiente, começou a gritar:
— Estou vendo! Estou vendo o E.T. Cuidado, gente! Ele é amarelo e chifrudo. E tem uma arma nas mãos!
Na realidade, Bartolomeu estava alucinando. Sua mente estava tão perturbada que construía imagens irreais. Não era um alcoólatra comum, era um amotinador. Além de beber tudo que estivesse à sua frente, era um especialista em chamar a atenção social. Por isso seu apelido era Boquinha de Mel. Amava beber e amava mais ainda falar. Aliás, os amigos mais íntimos diziam que tinha a SCF, a síndrome compulsiva de falar.
Ele agarrava as pessoas próximas, estimulando-as a ver o que só ele via. Elas tentavam se soltar das mãos dele com safanões e xingamentos.
O bêbedo balbuciava:
— Que povo mal-educado! Só porque vi primeiro o E.T. eles morrem de inveja.
Enquanto isso, no topo do San Pablo, o homem que pensara em desistir da vida começou a pensar que, na verdade, precisava exterminar era seu preconceito, pois estava repleto de idéias vazias e conceitos superficiais sobre a vida e a morte. Exaltava a própria cultura, mas agora precisava exaltar a própria ignorância — um comportamento improvável (e até doloroso) para quem sempre se julgara um brilhante intelectual. Dentro do mundo acadêmico, ele parecia ter vastos conhecimentos, que ostentava com tanto orgulho, mas nunca poucos minutos haviam sido tão longos para fazê-lo enxergar a sua insensatez.
Sentiu que estava tomando uma ducha de serenidade. E essa ducha não parava de jorrar do homem saturado de incógnitas e sem glamour social. Como se não bastasse o que havia argüido, o forasteiro ampliou o bombardeamento. Fez um passeio pela história de um grande pensador:
— Por que Darwin, nos instantes finais de sua vida, quando sofria de intoleráveis náuseas e vômitos, bradava ”Deus meu”? Era ele um fraco ao clamar por Deus diante do esgotamento de suas forças? Era ele um covarde por se perturbar diante da dor e, ao se aproximar da morte, considerá-la um fenômeno antinatural, embora a sua teoria se fundamentasse em processos naturais da seleção das espécies? Por que ocorreu um grave conflito entre sua existência e sua teoria? A morte é o fim ou o começo? Nela nos perdemos ou nos encontramos? Será que, quando morremos, somos regurgitados da História como atores que nunca mais contracenam?
O suicida reagiu com espanto, engoliu saliva. Nunca havia pensado nessas questões. Jamais refletira sobre a hipótese de que, de forma tão singela quanto um bebê que regurgita o leite que o amamentou, ele, ao querer morrer, estaria regurgitando sua história da História. Embora fosse partidário da teoria da evolução, desconhecia o homem Darwin e seus conflitos. Mas será que Darwin havia sido incoerente e frágil? Não... não podia ser. ”Darwin não desistiu de viver. Ele certamente se apaixonou pela vida muito mais do que eu”, pensou.
A sensação que tinha era de que o homem das questões inumeráveis lhe tirara a roupa da soberba sem pedir permissão. Enquanto o coração se acalmava, procurou recuperar o fôlego, como se pegasse carona no ar que aspirava para percorrer áreas de sua mente jamais percorridas. Respondeu com franqueza:
— Não, não sei. Jamais pensei nessas questões.
E o forasteiro emendou:
— Trabalhamos, compramos, vendemos e construímos relações sociais; discorremos sobre política, economia e ciências, mas no fundo somos meninos brincando no teatro da existência, sem poder alcançar sua complexidade. Escrevemos milhões de livros e os armazenamos em imensas bibliotecas, mas somos apenas crianças. Não sabemos quase nada sobre o que somos. Somos bilhões de meninos que, por décadas a fio, brincam neste deslumbrante planeta.
O suicida diminuiu a respiração. Começou a resgatar sua história e sua identidade. Júlio César Lambert — esse era o seu nome — era portador de raciocínio arguto, rápido, privilegiado. Em sua promissora carreira acadêmica, quando defendera suas teses de mestrado e doutorado, obtivera notas máximas com louvor. Também havia participado de muitas bancas como avaliador de trabalhos alheios. Perturbava mestrandos e doutorandos com suas críticas ácidas. Sempre fora um ególatra, e sua expectativa era a de que os outros gravitassem na órbita da sua inteligência. Agora, no entanto, participava de uma banca cujo avaliador era um maltrapilho. Sentia-se uma criança indefesa diante dos próprios medos e da própria falta de sabedoria. Mas, pela primeira vez, foi chamado de menino, e não se contorceu de raiva, pela primeira vez teve prazer em reconhecer sua pequenez. Já não se sentia um homem diante do próprio fim; via-se como um ser humano em reconstrução.
As loucuras só podem ser tratadas quando abandonam seus disfarces. E Júlio César se escondia atrás de sua eloqüência, cultura e status acadêmico. Agora, começava a remover suas camuflagens. Haveria um longo caminho pela frente.
O sol já se punha no horizonte. E o suicídio se dissipava no topo do San Pablo. Nesse momento, o homem que resgatara Júlio César citou o número vinte, mostrando-se consumido por um estado de aflição. Júlio César, intrigado, questionou:
— Por que você cita números enquanto conversamos?
O homem não respondeu de imediato. Olhou para o horizonte, viu várias luzes se acendendo, mas outras se apagavam. Respirou lentamente, como se quisesse estar presente em todos os lugares para reacendê-las. Virou o rosto para Júlio César, penetrou profundamente em seus olhos e falou, com tensa suavidade:
— Por que eu conto números? No breve intervalo de tempo em que permanecemos no alto deste edifício, vinte pessoas fecharam os olhos para sempre. Vinte pessoas desistiram de viver. Vinte seres humanos não deram o direito de defesa a si mesmos, como você não dava. Pessoas que um dia brincaram, amaram, choraram, batalharam, recuaram... agora deixam um rastro de dor na memória dos que ficam.
Júlio César não entendia a apurada sensibilidade daquele homem. Quem era ele? O que vivera para ter tamanha afetividade? O sagaz professor tentava definir o intruso, sem êxito. E, num lance de olhar, percebeu que o forasteiro estava chorando. Era uma reação incompreensível para um homem tão forte, afinal. Parecia que penetrava na dor indescritível dos filhos que perderam os pais e cresceram se perguntando: ”Por que não suportou sua dor por mim?”. Ou parecia que percorria a mente dos pais que perderam os filhos e que, apesar de freqüentemente terem feito muito por eles, se contorciam de culpa, alimentada pelo pensamento: ”O que eu poderia ter feito por meu filho e não fiz?”. Ou ainda parecia que o invasor chorava porque resgatava suas perdas desconhecidas.
O fato era que tanto as palavras como as lágrimas do forasteiro fizeram Júlio César se desarmar completamente. O intelectual começou, assim, uma viagem para os trilhos da sua infância, e não o suportou. Permitiu-se, também, cair em pranto. Como poucas vezes na vida, chorou sem se importar com as pessoas que o observavam. Era um homem de cicatrizes profundas.
— Meu pai brincava comigo, me beijava e me chamava de ”meu filho querido”.
E, suspirando fundo, falou de algo que julgava proibido falar, algo que mesmo seus colegas mais íntimos desconheciam. Algo que estava enterrado, mas continuava vivo e influenciando a sua maneira de interpretar a vida.
— Mas ele me abandonou quando eu era criança, sem me dar explicação. — Fazendo uma pausa, acrescentou: — Eu assistia a um desenho animado, na sala, quando ouvi o forte estalido que vinha de seu quarto. Quando cheguei para saber o que havia ocorrido, vi que ele estava sangrando, caído no chão. Eu tinha apenas seis anos. E gritava sem parar, pedindo ajuda. Minha mãe não estava em casa. Corri até os vizinhos, mas meu desespero era tão grande que, por alguns momentos, ninguém entendeu minha crise. Mal começava a vida e perdia minha infância, minha inocência. Meu mundo desabou. Passei a detestar desenhos animados. Não tive outros irmãos. Minha mãe, viúva e pobre, tinha de trabalhar fora; lutou como uma valente para me sustentar, mas contraiu um câncer e morreu quando eu tinha doze anos. Fui criado por tios. Passava de casa em casa, sentia-me um estranho em lares que nunca foram meus. Fui um adolescente irritadiço, pouco afeito às festas de família. Pudera: não poucas vezes, fui tratado como um empregado e tinha de me calar.
Júlio César havia desenvolvido uma personalidade agressiva. Era pouco sociável, tímido e intolerante. Sentia-se feio e mal-amado. Para não se destruir, compensara seus conflitos no estudo. Com dificuldades, entrou para a universidade e tornou-se um aluno brilhante. Trabalhava durante o dia, ia para a faculdade à noite, estudava nas madrugadas e nos finais de semana. E, externando uma raiva jamais superada, adicionou:
— Mas ultrapassei todos aqueles que zombaram de mim. Tornei-me mais culto e bem-sucedido que eles. Fui um universitário exemplar e tornei-me um professor respeitadíssimo. Fui invejado por uns e odiado por outros. Muitos me admiravam. Casei-me e tive um filho, João Marcos. Mas acho que não fui nem bom amante nem bom pai. O tempo passou e, há um ano, me apaixonei por uma aluna quinze anos mais nova. Fiquei desesperado. Tentei seduzi-la, comprá-la, contraí dívidas. Acabei com meu crédito, perdi minha segurança... e, por fim, ela me abandonou. Meu chão se abriu. Minha esposa descobriu meu caso e me abandonou também. Quando ela se foi, percebi que ainda a amava; não podia perdê-la! Tentei reconquistá-la, mas ela estava cansada do intelectual que nunca fora afetivo, que era pessimista, deprimido e ainda por cima estava falido. Deixou-me.
Nesse momento, começou a se permitir chorar, algo que nunca mais acontecera depois da perda da sua mãe. Lacrimejava e começou a limpar os olhos com a mão direita. Quem via o autoritário professor não conhecia suas cicatrizes. E continuou seu inquietante relato:
— João Marcos, meu filho, caiu no mundo das drogas. Agressivo, sempre me acusou de nunca ter brincado ou ter sido amável, companheiro e amigo. Foi várias vezes internado. Hoje mora em outro estado e se recusa a falar comigo. Resumindo, desde os cinco anos coleciono incontáveis abandonos. Alguns por culpa dos outros, outros por culpa minha - disse com sinceridade, começando a aprender a retirar seus disfarces.
Assim que terminou, um filme passou rapidamente pela sua mente. Recordou as últimas imagens do pai, imagens que estavam bloqueadas. Recordou também que o chamara dia e noite por longas semanas após sua perda. Cresceu com raiva do pai, crendo que ele estava preso em sua gaiola emocional, alienado das dores que ele, Júlio, sentiria no futuro.
Agora estava repetindo a mesma trajetória. O passado calava mais forte do que sua notável carreira acadêmica. Sua cultura não o tornara flexível nem o relaxara. Era um homem engessado, impulsivo, tenso. Nunca se desarmou diante de seus psiquiatras e psicólogos. Não raras vezes os criticava frontalmente por considerar as interpretações deles infantis para alguém do seu nível intelectual. Convencê-lo era uma tarefa dantesca.
Após rasgar a sua história e expô-la cruamente, o intelectual fechou-se novamente, pois temia que o homem ao seu lado lhe desse uma enxurrada de conselhos, de pensamentos de auto ajuda, de informações sem raízes e de orientações sem efeitos. Mas o forasteiro não fez nada disso. Brincou num momento em que era quase impossível brincar. Disse suavemente:
— Meu amigo, você está numa grande enrascada.
Júlio César deu um leve sorriso. Não esperava essa resposta. Os conselhos não vieram. Em seguida o estranho mostrou que, apesar de não conseguir sentir a dor dele, conhecia a matemática do abandono.
— Sei muito bem o que é perder! Há momentos em que o mundo desaba sobre nós e ninguém é capaz de nos compreender!
Enquanto falava, tocou o dedo indicador no olho direito e depois no esquerdo e enxugou também suas lágrimas. Talvez as suas cicatrizes fossem tão profundas ou maiores do que as que ouvira.
Júlio César, novamente sensibilizado, perguntou:
— Diga-me: quem é você?
A resposta foi um cálido silêncio.
— É psiquiatra ou psicólogo? — perguntou, pensando estar diante de um profissional inusitado, incomum.
— Não sou — afirmou com segurança o estranho.
— É filósofo?
— Aprecio o mundo das idéias, mas não sou.
— É um líder religioso? — falou, achando que podia se tratar de um líder católico, protestante, mulçumano ou budista.
— Não sou! — respondeu com firmeza o homem. Como não obtivera nenhuma resposta, Júlio César, intrigado, perguntou com impaciência: — Você é louco?
— É provável - respondeu o outro, com um pequeno sorriso no rosto. Júlio César não poderia estar mais confuso.
— Quem é você? Diga-me.
Pressionava o protagonista contemplado por uma multidão confusa, que não sabia o diálogo que se desenrolava no topo do edifício. O psiquiatra, o chefe dos bombeiros e o da polícia se esforçavam para ouvir a conversa, mas nem sempre era audível. Com a insistência de Júlio César, a reação do misterioso homem não poderia ser mais perturbadora. Ele abriu os braços, levantou-os para o alto e disse:
— Quando considero a brevidade da existência dentro do pequeno parêntese do tempo e reflito sobre tudo o que está além de mim e depois de mim, enxergo minha pequenez. Quando considero que um dia tombarei no silêncio de um túmulo, tragado pela vastidão da existência, compreendo minhas extensas limitações e, ao deparar com elas, deixo de ser deus e liberto-me para ser apenas um ser humano. Saio da condição de centro do universo para ser apenas um andante nas trajetórias que desconheço...
Suas palavras não responderam às indagações de Júlio César, mas ele as bebeu. Elas produziram em seu intelecto uma indagação que seria comum na boca de muitos que cruzariam a história do forasteiro: ”Esse homem é um psicótico ou um sábio? Ou os dois?”. Tentava alcançar as nuances dos pensamentos que ouvira, mas era uma árdua tarefa.
O intrépido homem novamente olhou para o alto e mudou de discurso, começando a questionar a Deus de um modo que Júlio César nunca ouvira:
— Deus, quem és tu? Por que te calas diante das loucuras de alguns religiosos e não abrandas o mar de dúvidas dos céticos? Por que disfarças teus movimentos atrás das leis da física e escondes a tua assinatura nos eventos que ocorrem ao acaso? Teu silêncio me inquieta!
O intelectual era um especialista em sociologia da religião; conhecia o cristianismo, o islamismo, o budismo e outras religiões, mas esses textos não o ajudavam a compreender a mente do forasteiro. Não sabia se ele era um ateu irreverente ou alguém que tivesse uma intimidade informal com o Autor d, existência O notável professor novamente se interrogou: Que homem é esse? De onde saiu? Qual a sua origem?
As pessoas, na sociedade moderna, inclusive líderes de vários segmentos, eram por demais previsíveis. Suas reações transitavam dentro do trivial. Não tinham comportamentos que provocassem a emoção alheia nem excitassem a imaginação. O que faltava nos ”normais” sobejava no misterioso homem que estava diante de Júlio César. Sua curiosidade para saber a identidade do forasteiro expandiu-se tanto que ele novamente perguntou, mas dessa vez foi diferente. Primeiro se interiorizou e reconheceu que sabia muito pouco sobre si mesmo.
— Eu não sei quem sou, preciso me achar. Mas, por favor, insisto, quem é você?
O homem abriu um sorriso a meio mastro; Júlio César começava a falar a sua linguagem. Sob forte inspiração ele se revelou. Em pé, observando o horizonte onde o sol se punha, abriu um pouco as pernas, levantou os braços e comentou com segurança:
— Sou um vendedor de sonhos!
A mente do intelectual ficou mais obscura ainda. Parecia que o estranho deixava seu estado de lucidez e mergulhava num estado de insanidade. Para Júlio César, a identificação do estranho não representava nada, a não ser assombro, mas para ele ela queria dizer quase tudo.
Lá embaixo, Bartolomeu não parava de gritar e incomodar as pessoas:
— Olhem o chefe dos E.T.s. Está de braços abertos e mudou de cor.
Dessa vez não era uma alucinação, mas um erro de interpretação. Ou não! Era difícil saber. Após se declarar, o vendedor de sonhos compenetrou-se, olhou para a multidão e teve uma reação estranha. Compadeceu-se dela.
Júlio César esfregou as mãos no rosto. Não acreditava na definição que tocava seus ouvidos.
— Vendedor de sonhos? Como assim? O que é isso? — perguntou, completamente perdido em sua racionalidade.
O estranho parecia tão inteligente! Revelara maturidade intelectual, estilhaçara seus paradigmas, ajudara a organizar sua confusão mental e, quando o céu estava azul-celeste, fez desaguar uma súbita tempestade. Jamais Júlio César ouvira alguém se auto-intitular desse modo.
O psiquiatra, a vinte e cinco metros de distância, ao ouvir a expressão, fez uma análise rápida. Sem margem de insegurança, assegurou para o chefe dos bombeiros e da polícia: — Eu sabia. São da mesma laia.
Não bastasse a estranheza do título, o forasteiro, ao se identificar, olhou para o lado direito e viu uma pessoa num edifício vizinho, a cerca de cento e cinqüenta metros, apontando uma arma para ele. Estava com silenciador. Numa reação magistral, empurrou Júlio César para o chão e ambos caíram. Júlio César não entendeu o que acontecera, apenas ficou atônito. Para não assustá-lo ainda mais, o vendedor de sonhos disse:
— Se essa queda o perturbou, imagine o que aconteceria quando você tocasse o solo desse edifício.
A multidão pensou que o homem havia contido o suicida. Todos estavam sem entender os fatos. Ambos se levantaram. O vendedor de sonhos olhou para o horizonte e viu que o atirador havia saído de cena. Será que ele estava tendo alucinações? Quem desejaria a morte de alguém tão simples? Em seguida, ambos apareceram de pé, livres, no parapeito do edifício.
Júlio César olhou para o estranho e este reafirmou, sem margem de insegurança:
— Sim, sou vendedor de sonhos.
Confuso, Júlio César, por alguns momentos, pensou que o homem que estava diante de si fosse um vendedor ambulante. Ou um vendedor de ações da bolsa. Mas, com aquelas idéias, parecia impossível. Curioso, questionou-o:
— Como assim? Que produtos você vende?
— Eu procuro vender coragem para os inseguros, ousadia para os fóbicos, alegria para os que perderam o encanto pela vida, sensatez para os incautos, críticas para os pensadores.
Júlio César, num rompante de orgulho, lembrando-se do tempo em que se sentia um deus por ter vasta cultura acadêmica, disse consigo: ”Não é possível! Estou tendo um pesadelo. Acho que já morri e não percebi. Num momento eu queria tirar minha vida porque estava preso no novelo dos meus conflitos. Noutro, estou mais perturbado ainda porque estou diante de alguém que me resgatou e diz que vende o que é invendável. Vende o que todos procuram mas não existe nos mercados”. E, para sua surpresa, o estranho completou:
— E para os que pensam em pôr um ponto final na vida, procuro vender uma vírgula, apenas uma vírgula.
— Uma vírgula? — perguntou, confuso, o sociólogo.
— Sim, uma vírgula. Uma pequena vírgula, para que eles continuem a escrever sua história.
Júlio César começou a transpirar. De repente, sob um estado de iluminação interior, caiu em si. O irreverente homem acabara de vender para ele uma vírgula, e ele a comprara sem perceber. Não houve preço, não houve pressão, não houve chantagem, não houve apelos. Ele a comprara para retornar às raízes da essência humana. O intelectual tornara-se aluno do maltrapilho. Fora irrigado por uma suave solidariedade. Colocou as mãos na cabeça para ver se tudo o que se passava com ele era real.
O ilustre professor de sociologia começou a ter insights. Olhou para baixo e viu a multidão esperando sua reação. No fundo, aquelas pessoas estavam tão perdidas quanto ele. Eram livres para ir e vir, mas se sentiam pesadas, controladas, sem suavidade. Faltava-lhes liberdade para arejar a própria personalidade.
O professor parecia penetrar nas entranhas de um filme cujas cenas eram surreais e ao mesmo tempo concretas. ”Esse sujeito é real ou tudo o que estou vendo é uma armadilha da minha mente?”, indagou para si mesmo, sob uma aura de fascínio e insegurança. Nunca ninguém o encantara como o incompreensível peregrino.
Em seguida, o misterioso homem fez um convite que o abalou ao máximo.
— Venha e siga-me, e eu o farei um vendedor de sonhos. O chamamento provocou um burburinho em milhões de neurônios do intelectual. Ele não conseguiu reagir. Sua voz se embargou. Estava fisicamente paralisado, mas pensativo. ”Que proposta é essa? Como posso seguir um homem que conheci há cerca de uma hora?”, pensou, transtornado. Mas ao mesmo tempo sentiu uma atração irresistível pelo enigmático chamamento.
Estava cansado dos debates acadêmicos. Ele era um dos mais eloqüentes intelectuais entre seus pares, mas muitos dos colegas, inclusive ele mesmo, viviam no lodo do ciúme e das vaidades intermináveis. Sentia que faltava, no templo do conhecimento, na universidade, tolerância, estímulo à rebeldia do pensamento e uma dose de loucura para libertar a criatividade. Alguns templos do conhecimento tinham se tornado tão rígidos como as mais rígidas religiões. Os professores, cientistas e pensadores não tinham liberdade. Tinham de seguir a cartilha dos departamentos.
Agora Júlio César estava diante de um homem malvestido, cabelos desarrumados, sem glamour social, mas instigante, aventureiro, rebelde ao pensamento vigente, crítico, arrebatador, livre, e que, para completar, lhe fazia a mais maluca e excitante das propostas: vender sonhos. ”Como? Para quem? Com que objetivo? Será que serei alvo de deboche ou de aplausos?”, refletia o intelectual. Ao mesmo tempo que se perturbava com o chamamento, vinha à sua mente que todo pensador deve andar por ares nunca antes percorridos.
Embora tivesse grave transtorno emocional e fosse saturado de orgulho, Júlio César sempre fora ponderado, jamais havia dado vexame em público. A primeira vez foi no edifício San Pablo. Sabia que dessa vez dera o maior de todos os escândalos. Não fizera teatro, estava realmente pensando em pôr um fim em sua vida. Como tinha medo de usar armas ou tomar remédios, fora ao topo do edifício.
O convite continuava ecoando em sua mente como uma granada que se estilhaça em mil pedaços, rompendo seus paradigmas. Um longo minuto se passara. Em conflito, pensou: ”Tentei viver sob o teto do júbilo e dos alicerces da segurança, mas me afundei. Tentei estimular meus alunos a pensar, mas formei muitos repetidores de informações. Tentei contribuir para a sociedade, mas era uma ilha de soberba. Se conseguir vender um pouco de sonhos para algumas pessoas, tal qual esse misterioso homem me vendeu, talvez minha vida tenha mais sentido do que teve até aqui”.
Então resolvi segui-lo. Eu, o narrador desta história, sou Júlio César, o primeiro dos discípulos desse homem extraordinário e inquietante.
Ele se tornou meu mestre. Fui o primeiro que arriscou seguir uma jornada sem destino, sem agenda, completamente imprevisível. Loucura? Talvez, mas não menos do que aquela que vivi.
Logo que saímos de cena fomos barrados por um dos personagens que nos observavam atentamente no topo do edifício, o chefe da polícia. Era um homem alto, de um metro e noventa, com leve sobrepeso, farda impecável, cabelos grisalhos, faces sem rugas e com ar de quem amava o poder.
Conteve-nos, e não se importou comigo. Estava acostumado a lidar com suicidas; considerava-os frágeis e não seres humanos complexos. Para ele, eu era mais uma estatística da sua profissão. Não gostei. Senti o gosto amargo do preconceito. Afinal de contas, eu era muito mais culto do que esse portador de armas. Minhas armas são as idéias, mais poderosas, mais penetrantes. Mas não tinha força para me defender. Não precisava. Tinha um torpedo ao meu lado, o homem que me resgatara.
O real interesse do policial era interrogar o homem que me resgatara. Queria saber quem era o amotinador. O comportamento dele não estava na sua estatística. Não conseguira ouvir muito do que falávamos, mas o pouco que conseguiu escutar o deixara também assombrado. Olhou de cima a baixo o vendedor de sonhos, observou sua aparência, e não acreditava na imagem que contemplava. O forasteiro parecia fora do contexto social. Inquieto, começou a fazer seu interrogatório. Pressenti que, tal como eu, o policial entraria no vespeiro. E entrou.
— Qual o seu nome? — perguntou, num tom arrogante. O homem que estava ao meu lado fitou furtivamente seus olhos, mudou de assunto e chocou-o com estas palavras:
— Você não está alegre por essa pessoa ter corrigido sua rota? Não entrou num estado de júbilo pelo fato de ela ter resgatado sua vida? — E apontou o olhar para mim.
O frio policial caiu do pináculo do poder. Perdeu o rebolado. Não esperava que sua insensibilidade fosse desnudada em poucos segundos. Constrangido, disse formalmente:
— Sim, claro que estou feliz por ele.
Todas as pessoas que respondiam estupidamente para o mestre engoliam sua insensatez. Eram estimuladas a enxergar seu superficialismo e a cheirar o odor das próprias tolices. Ele continuou a torpedeá-lo:
— Se você está feliz, por que não exterioriza sua felicidade? Por que não pergunta seu nome e lhe dá os parabéns? Afinal de contas, a vida de um ser humano não vale mais do que o edifício que nos sustenta?
O chefe da polícia ficou nu mais rápido do que eu. E achei ótimo, saí do estado de vergonha para os patamares nobres da auto-estima. O homem que ele impactou era arguto, um especialista em instigar a inteligência. Enquanto ele constrangia o chefe da polícia, comecei a ter insights. Percebi que não é possível seguir um líder sem admirá-lo. A admiração é mais forte que o poder. O carisma é mais intenso que as pressões. Eu começara a admirar muito o carismático homem que me chamou.
Enquanto refletia sobre isso, veio à minha mente a relação com meus alunos. Eu era um depósito de informações.
Nunca entendera que o carisma é fundamental para assimilar o conhecimento. Primeiro vem o carisma do mestre, depois o conhecimento que ele detém. Eu tinha a doença da maioria dos intelectuais: chatice. Era um sujeito sem sabor, crítico, cobrador. Nem eu me suportava.
Embaraçado com os surpreendentes pensamentos que ouvira, o chefe da policia olhou rapidamente para mim e disse, mais constrangido ainda, como se fosse uma criança recebendo orientações:
— Parabéns, senhor. — No momento seguinte, num tom mais brando, ele pediu os documentos para o vendedor de sonhos.
Com singeleza, este respondeu:
— N
Colégio Estadual Balbino Muniz Barreto
Praça dos Três Poderes, nº 31 - Centro
(75) 88355437
(75) 35442187